segunda-feira, 20 de junho de 2011

O Medo (ou "Pina 3D")


É mesmo uma pedra no meio de um palco ensopado em água? Mas qual é a verdadeira rocha: a da esquerda ou a da direita?
Wim Wenders presta homenagem, mas faz muito mais. Traz Pina para dentro, de dentro para fora e para dentro de nós também.
São cenas antigas, gravadas a preto e branco; são cenas modernas, revisitadas pelos bailarinos de sempre; são cenas de sempre, em que Pina aparece a fumar, a falar, a rir ou a fazer aquilo que fará para sempre, a dançar.
Bailarinos do passado e presente da Tanztheater Wuppertal relembram Pina, um a um, por palavras não ditas. Palavras, porque as ouvimos, narradas em "voz off"; não ditas porque as palavras acompanham rostos de boca fechada de homens e mulheres que dançaram e viveram e sonharam com Pina.
Alguns falam de como ela os assustava; outros, de como ela trouxe para fora o melhor que neles havia. "Dança pelo amor!", dizia ela a um deles; "Lembra-te que as tuas fragilidades são a tua maior força!", gritava a outro. Mas não era pelo amor ou pela força ou pelas fraquezas. Pina sabia que o paradoxo do movimento é o medo. Ela própria o disse, melhor do que ninguém: "Tanz, tanz, sonst sind wir verloren..." (Dancem, dancem, senão estamos perdidos...)
É o movimento como resposta ao medo. Todos sabemos, a começar pelo Newton. Às vezes é pecado, outras vezes são só maçãs que caem na cabeça. Mas é movimento. Enquanto há vida há esperança? Não, de todo. Enquanto há movimento há esperança. Parar não é morrer, é ceder ao medo. E é por ele e contra ele que se dança. É por ele e contra ele que Pina trabalhou e a esse amor ao medo dedicou uma vida inteira maior que muitas vidas juntas.
Wim Wenders tem aqui a sua melhor obra, mais uma vez completamente entregue ao amor ao fado (a despedida final de Pina é ao som do arrepiante fado de Coimbra, e nem aí Wenders esqueceu o medo: "Os teus olhos são tão verdes, são duas avés-marias; um rosário de amarguras que eu rezo todos os dias...").
No fim, fica um coração apertado (cheio demais, talvez?), comprimido contra o tórax e a bater um bocadinho mais depressa, também ele entregue ao medo de parar de bater.
E apesar da reticência nas palavras que acompanha todo o filme, também nelas há movimento; as palavras são o movimento de quem dança parado, de quem dança para dentro.

O importante não é não ter medo.
O importante é ter medo... e dançar na mesma.


Afinal a ideia é sempre a mesma o bailarino a pôr o pé
no sítio uma coisa muito forte
na cabeça no coração nos intestinos no nosso próprio pé
pode imaginar-se a ventania quer dizer
"o que acontece ao ar" é a dança
pois vejam o que está a fazer o bailarino que desata por aí fora
("por aí dentro" seria melhor) ele varre o espaço
se me permitem varre-o com muita evidência
somos obrigados a "ver isso"
que faz o pé forte no sítio forte o pé leve no sítio leve
o sítio rítmico no pé rítmico?
(...)
claro que "isto" apavora
a dança faz parte do medo se assim me posso exprimir


Herberto Helder

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